Confiança

Há cerca de 10 anos atrás, se não me engano, na época da gravação do Jardim Inglês, eu estava trabalhando no estúdio e alguma coisa não estava bem. Eu estava desconfortável.
Comecei a prestar um pouco mais de atenção na sonoridade que vinha das caixas de monitoração do estúdio e agucei meu foco auditivo. Algo realmente não estava bem. Havia um “buraco” no som, algumas frequências que deveriam estar ali, não estavam. Uma parte faltava. Evidentemente, havia mais gente no estúdio entre técnicos, músicos e auxiliares. Perguntei se alguém percebia alguma coisa estranha e todos disseram que não e que tudo parecia normal e que, provavelmente, eu estaria “ouvindo fantasmas”, o que acontece com bastante frequência quando passamos muitas horas, por muitos dias, enfiados dentro de um estúdio, escutando as mesmas coisas com um grau de detalhe muito grande!
Não me convenci. Chamei o engenheiro que trabalhava na manutenção do estúdio e indaguei sobre essa assombração sonora que me afligia. Ele parou ao meu lado e juntos escutamos vários trechos de músicas, tentando pescar o fantasma em algum momento de desatenção. Depois de algum tempo me disse que soava normal aos ouvidos dele, mas prometeu investigar. Esse engenheiro é um profissional que respeito e que tem um conhecimento técnico muito maior que o meu. A opinião dele era importante.
Saí do estúdio desconfiado: eu não estava “ouvindo coisas” e alguma faixa de frequência estava faltando, havia um “buraco no som”!! E, além do mais, eu confiava no meu ouvido.
No dia seguinte, quando cheguei ao estúdio, o engenheiro me chamou até a sala de mixagem, onde as caixas ficavam, e colocou a fita pra tocar. Abri um sorriso sutil. O som estava “inteiro” e aquele buraco sonoro tinha desaparecido! Perguntei o que havia acontecido e como ele havia consertado o problema. Ele me respondeu que, há um tempo atrás, um dos alto-falantes destas caixas tinha estourado e, depois de consertado, foi recolocado no lugar, porém, com um detalhe: foi reinstalado com a fase invertida o que causava um cancelamento de determinadas frequências e, em última instância, dava a impressão de um “buraco no som”. Ele me deu os parabéns por ter descoberto um problema que estava lá há algum tempo e que ninguém, entre músicos e técnicos que usavam o estúdio, tinha percebido.
Eu vivi outras situações como essa, sendo a mais recente durante a gravação do Mundo Perfeito, quando surgiu, nos primeiros dias, uma questão relacionada à sonoridade de um revestimento de granito da sala de mixagem. Coisa pra gente louca, sabe?!…rssrs
Mas a principal lição dessa história toda é que temos que aprender a confiar nas impressões que temos. Muitas vezes, não damos ouvidos às nossas intuições, que no final provam-se corretas. Lembrei agora de um livro que li chamado “Blink” ( piscar, em inglês), que fala justamente sobre isso, mas mais especificamente sobre as primeiras impressões, àquelas que temos quando, num piscar de olhos, percebemos algo que pode levar muito tempo pra ser percebido por alguém que não tem a mesma intuição que temos.
Dêem ouvidos aos seus olhos, vejam o que seus ouvidos falam, sintam o cheiro de cada palavra e desconfiem da palavra, pois ela, em geral, mascara o que o nosso íntimo, normalmente, já traduziu.
Bjs,
nvs

O Trabalhador e o Vagabundo

Entrando numa ferragem no centro de Porto Alegre, com um amigo meu, ficamos olhando aquelas paredes altas forradas com expositores que exibiam as centenas de ferramentas e utensílios, perfeitas maravilhas tecnológicas, que aos nossos olhos tinham mil utilidades. Maravilhas tecnológicas rudimentares, eu sei, mas se você observar com cuidado cada item listado a seguir, verá que é fruto de intrincada evolução:
Escada, martelo, serrote, carrinho de mão, ventilador, alicate, panela, peças avulsas para consertar filtros, moedores, enxadas, enxós, grosas e roldanas. Enfim, uma infinidade de coisas úteis para nós.
Nesse momento, o meu amigo vira e me diz:
- É – falou enquanto armava um sorriso debochado – nós estamos olhando essas maravilhas e pensando em quantas coisas podemos fazer e resolver com o que tem aqui dentro. Agora, imagina se, por acidente, um vagabundo entra aqui. Não vê nada de útil! O que ele vai fazer com um martelo? O que ele vai fazer com um trado se ele não sabe nem pra que serve?
Caí na gargalhada, enquanto meu amigo ia mostrando diferentes exemplos com cada peça no expositor. Tudo o que ele me dizia, de forma muito bem humorada, era verdade!
O que um cara que não come açúcar, vai achar em uma loja de doces de Pelotas? O que um colono que a vida inteira cultivou a sua gleba de terra em algum canto do Brasil vai fazer numa lan house se a família inteira mora junto com ele? O que um workaholic vai fazer com uma licença prêmio que dobra suas férias? O que um vagabundo que não gosta de fazer, construir ou consertar qualquer coisa vai fazer numa ferragem?
Nada!
Saí da ferragem Gerhardt com a impressão que há muitos vagabundos nos dias de hoje, pois na ferragem, além do meu amigo e eu, havia poucas pessoas!
bjs,
nvs

Sutileza

Do ar eu quero o vento
Do mar eu quero a onda
Da boca eu quero o beijo
Da árvore a sombra

Da flor eu quero o perfume
Do pássaro eu quero o canto
Da corda eu quero o timbre
Do pau oco o santo

Da vida eu quero o tempo
Da morte eu quero a calma
Da pressa eu quero paciência
Do corpo a alma

De tudo eu quero um pouco
Do conhecimento a sapiência
Do velho a tranqüilidade
Da criança a inocência

Da ida eu quero a volta
De você eu quero o sim
Do não eu quero nada
Do começo o fim

Medo do escuro

Eu estava deitado na minha cama, sozinho, no escuro. Ouvi um estalo. Minha cabeça começou a perguntar: o que era aquele barulho? O assoalho de madeira normalmente estala quando há uma troca de temperatura do dia pra noite, isso todo mundo sabe, a não ser que alguém ou, pior, alguma coisa esteja caminhando na sala rumo ao quarto pra fazer coisas horripilantes com você. Que besteira! Não, não, nada disso. Deve ser apenas o assoalho estalando – pensei, retomando a calma e voltando a relaxar os músculos.
Logo em seguida, uma batida; depois, outra! Foi na porta da frente ou na da sala? Será que a “coisa” voltou, dessa vez, decidida a me pegar? O medo retornou com mais força. Não consegui me controlar e acendi a luz de cabeceira para verificar se nenhuma criatura havia penetrado sorrateiramente pra dentro do meu quarto. Nada. Ufa, estava a salvo! Estava mesmo? Acho que não, melhor levantar e verificar a sala e a porta da frente pra ter certeza de que continuava bem trancada e de que nada, nem ninguém, haviam tentado entrar.
Levantei e caminhei até a sala, na ponta dos pés, sem fazer qualquer ruído e segurando a respiração. Acendi as luzes e olhei receoso. Nada. A porta da frente também estava intacta. Eu estava em segurança. Relaxei.
Voltei ao quarto e deitei novamente já com os pensamentos mais leves. Cobri-me e, quando estiquei o braço para apagar a luz, hesitei. Meu pensamento acelerou. E se os barulhos voltassem com a escuridão? Resolvi deixar a luz acesa um pouco mais. O sono veio implacável e dormi leve por alguns poucos instantes. Abri os olhos, pesados do cansaço, e apaguei a luz. Quando o interruptor fez um clic, fiquei alerta outra vez.
Resolvi acender a luz de novo e dormir com ela acesa. Assim, apesar do desconforto do quarto iluminado, estaria protegido pelo manto da luz. Peguei no sono, dessa vez, profundamente, voltando a acordar apenas quando os primeiros raios de sol bateram na janela do meu quarto. Eu sabia que nesse momento não corria mais risco nenhum e que poderia apagar a luz de cabeceira, pois meu medo tinha partido junto com a escuridão da noite.
Por isso, toda noite, tenho medo do escuro.
Bjs,
nvs

Bichos da luz

Somos bichos mas já nos esquecemos disso. Vivemos num mundo asséptico e isolado do resto. Nesse resto, vivem todas as outras espécies – subjugadas pela supremacia intelectual humana.
Quando nos deparamos frente a frente com animais, principalmente insetos e répteis, nos sentimos fragilizados e invadidos, pois estes são bichos; nós, não. Uma perereca no banheiro já é motivo suficiente para um alvoroço dentro de casa. E se ela pular bem na hora que alguém estiver fazendo xixi, pronto: a novela começou. Baratas, mosquitos e borrachudos são indispensáveis nessa festa. Agora, se houver um gambá no forro, um lagarto numa toca perto de casa ou uma cobra morta por algum vizinho, que disse que era uma jararaca muito venenosa, o quadro está completo!
Na verdade, ainda não está. Todos estes ingredientes são elevados à terceira potência se faltar luz! Quando nos tiram a eletricidade, nos tiram a civilidade. Viramos bichos de novo. O jantar tem que ser esquentado no fogo, pois o microondas, por motivos óbvios, não funciona. Tevê? Nem pensar! Som, chuveiro e iluminação são luxos permitidos apenas quando tem eletricidade – quando tem luz.
Somos um pouco como os bichos da luz – insetos que voam ao redor de uma fonte luminosa. Basta acender uma lâmpada que estamos lá, inebriados pelo brilho que nos atrai como um imã. Somos viciados nas facilidades da eletricidade, não temos perspectiva de cura.
Não esquecemos que somos bichos. Apenas não nos demos conta que somos um outro tipo de bicho, diferente daquele que aparece nos livros e que tinha como necessidades básicas: comida, bebida e abrigo. Precisamos, também, de eletricidade.
Bjs,
Nvs

P.S.- post escrito dia 6/2/8

Há coisas que combinam

Há coisas que combinam. Há coisas que não. Uma coisa que combina é café, sem açúcar, é óbvio, com chocolate meio amargo. Também combina café com um doce de ovos, como o já mencionado Pastel de Santa Clara.
Depois de ter almoçado uma prato de lula que inventei e que passarei a receita no final desse post, sentei na varanda, ainda um pouco sob o delicioso efeito de uma garrafa de Prosecco, para saborear um café, moído na hora, feito naquelas cafeteiras italianas com 2 quadradinhos de chocolate meio amargo. Uma delícia! Meio metido à besta, mas uma delícia…..rsrs
Talvez esse momento seja superado pelo que deverá acontecer, caso não haja mudança nas próximas horas do vento que virou de sul para nordeste e que possibilitará a primeira velejada da temporada!
O Hobie Cat está pronto: troquei os estais, montei o mastro, coloquei o trampolim, substitui os moitões 4×1 pelos novos 6×1, regulei os cabos, ergui a vela e agora falta apenas colocar a escota no lugar. Estarei velejando rumo ao prazer! A primeira será breve, já que há muitas peças e cabos que substituí. Tenho que ter certeza de que tudo está montado corretamente e de que não haverá surpresas em alto mar. Com o mar não se brinca, no máximo, se diverte com ele! Porém, sempre mantendo o respeito devido!
Velejar combina com férias, ao contrario de andar com barcos a motor. Pra mim, barcos com motor como lanchas, botes e jetskis são verdadeiras aberrações quando usados junto à orla. O pessoal, muitas vezes, não tem muita noção do quanto o barulho desses motores pode incomodar, tanto sobre, quanto sob a água. Quem já mergulhou e ouviu passar um jet, sabe do que estou falando. Por isso, os pescadores reclamam tanto dos jets. Espantam os peixes! Sem falar no óleo ….
Bem, mas agora já perdi um pouco o fio da meada. Vou passar a receita da lula pra vocês e vou tirar uma sesta na rede pra depois velejar!

Aí vai a receita da Lula à Van Soria:

- 500g de lula limpa cortada em rodela
- 4 dentes de alho
- 1 cebola média
- pimenta calabresa a gosto
- salsa
- cebolinha
- 3 colheres de sopa de colorau

Cozinhe a lula muito rapidamente, dando apenas um “susto” na água fervente. Cozinhe pequenas quantidades de cada vez pra que a água não baixe muito a temperatura, assim, você terá a lula no ponto certo: macia, sem ser borrachuda. Escorra bem e reserve. Pique o alho, a cebolinha e a cebola e comece a refogar numa frigideira grande com azeite de oliva. Seja generoso com o azeite!! Quando o refogado estiver bem quente, adicione a lula, a pimenta e, por último, o colorau, sempre mexendo devagar para ficar uniforme. No final, adicione a salsa por cima e tampe por alguns instantes. Sirva acompanhado de salada, arroz integral e, principalmente, com farofa. Enfeite com um raminho de salsa ou hortelã. É uma delícia!

Bjs a todos,
Nvs

P.S.- post escrito dia 4/2/8.

O mar e a borboleta

A tarde estava caindo e, depois de vários dias chuvosos, o céu finalmente se impunha com um azul profundo. Uma calmaria agradável me convidou pra colocar uma cadeirinha na beira da praia pra ver a mágica que acontece quando o dia recebe a noite.
Posicionei minha cadeirinha virada pra leste e sentei. Observei o movimento do mar e, de repente, fui surpreendido por uma desengonçada borboleta que, com seu vôo suave, se aventurou mar à dentro. Fiquei atônito! Que ousadia daquele frágil ser, sair da segurança da terra firme e encarar aquela imensidão sem fim!
O que será que aquele bichinho buscava? Qual seria a razão daquela façanha? Eu não podia compreender. Será que era uma decisão consciente ou uma ação involuntária? Nesse momento, ela fraquejou e quase caiu na água pra, logo em seguida, reerguer-se para o plano de vôo anterior.
Havia um barco dos pescadores no caminho e fiquei aliviado em ver a possibilidade da borboleta pousar ali. Eu pousaria, se fosse ela. Mas ela não: seguiu impávida, rumo ao desconhecido.
Lembrei de Ícaro e seu sonho de voar. A borboleta parecia com a mesma obstinação e tenacidade. Voava nem muito alto, nem muito baixo. Alto demais, ficaria à mercê do vento; baixo demais, poderia molhar as asas, o que seria fatal. Ícaro tinha o mesmo desafio, só que ele não deveria voar muito alto para que o sol não derretesse a cera que tinha nas asas que ele havia construído. Não lembro muito bem da história, mas acho que era assim…
Desviei o olhar por alguns segundos e, quando busquei a borboleta voando sobre a água, não a vi mais. Não sei o que o destino reservou àquele destemido ser. Não sei se o mar reclamou sua vida ou, se dessa vez, poupou-a.
Fechei minha cadeirinha e voltei pra dentro da casa. O mar e a borboleta ficaram lá fora…
Bjs,
Nvs

P.S.- post escrito dia 5/2/8.

Hoje tive acesso.

Oi, Pessoal.
Hoje tive acesso à internet e programei o up load de alguns posts para enviar na sequência dos próximos dias. O recém enviado, Dicionários, é um deles, então, não deixem de acessar, pois novos delírios virão!
bjs a todos,
nvs

Dicionários

Eu adoro dicionários. Tenho, ao lado da minha mesa, 4: o tradicional Aurelião; um inglês/português, que comprei em Cambridge; um italiano/português e um francês/português. Em casa, tenho outros 2 ou 3 e estou sempre de olho comprido em busca de uma nova fonte de pesquisa. Há, ainda, livretos de viagem que são um misto de dicionário e guia rápido de conversação que trazem frases prontas e expressões idiomáticas que auxiliam viajantes pouco versados naqueles idiomas. Tenho em alemão, chinês e italiano.
O Aurelião, que é um chumbo, parecendo mais um monólito, é o meu xodó. Foi um presente da minha madrinha e é fiel parceiro nos momentos de dúvida. O blog gerou um uso mais intenso desse tomo, o que me deixa feliz, pois, de que serve um dicionário se não há pesquisa de palavras para serem feitas? A etimologia, estudo da origem das palavras, sempre me interessou; talvez daí o meu gosto por dicionários. Vocês já pararam pra pensar de onde vieram as milhares de palavras que usamos no dia-a-dia e os diferentes sentidos que estas foram adquirindo ao longo do tempo? Por exemplo: a palavra assassino tem sua origem ligada aos usuários de haxixe que, num determinado período da história, eram os executores de ordens de morte. Então, aos poucos, a partir da palavra haxixe e de seus usuários – os hassassins, do persa – a palavra foi evoluindo para chegar a assassino. Hoje, a palavra assassino não tem mais nenhuma ligação com o haxixe e seus usuários. Interessante, não?! Eu acho.
Como vocês sabem, estou de férias. Ontem inaugurei a temporada com uma dúzia de ostras e uma garrafa de chardonnay; não posso reclamar. Na preparação pras férias, fiquei um pouco apreensivo com o fato de não estar levando um dicionário. Como seria estar sem o auxílio tão confiável das finas folhas do Aurelião? E se eu tivesse alguma dúvida durante a redação de um post? O que fazer? Fiquei inquieto.
O aniversário de um amigo me levou, na véspera de viajar, a uma livraria. Comprei o presente com rapidez e quando ia me dirigindo ao caixa, lembrei do meu dilema. Pedi auxílio a uma atendente que me trouxe a salvação da lavoura: um Aurélio, dicionário eletrônico. A glória! Instalei a versão 5.0 – revista e atualizada – no meu lap. O dilema se desfez. Estou agora escrevendo e tenho, em outra janela, o amparo do Aurélio, pronto pra me socorrer em caso de dúvida (até agora já foram algumas!!! Inclusive, na palavra assassino, é contada a etimologia de forma mais detalhada do que fiz no parágrafo anterior).
O dilema da falta do dicionário nas férias tinha sumido, mas não demorou a surgir outro: o Aurelião. Será que vou condená-lo ao descanso eterno na prateleira? Será que vou olhá-lo com o mesmo desdém de quem olha um Tijorola que foi recém trocado por um iphone, fruto da destruição criativa que impulsiona a melhoria na qualidade de vida daqueles que tem acesso às benesses da vida moderna? Não, definitivamente não. Serei grato ao Aurelião. Vou incorporar esse novo recurso com o aval de quem folheou inúmeras vezes as milhares de páginas em busca do sentido, até então oculto, das palavras impressas. Vou deixá-lo repousando com a dignidade que merece e, de vez em quando, vou buscar, na impressão das suas finas folhas, alguma palavra que dará sentido à sua existência, lembrando assim a origem do dicionário eletrônico – como o léxico etimológico.
bjs,
nvs

P.S.- post escrito dia 2/2/8.